A natureza reconstrutiva da memória

A memória sempre nos parece algo íntimo e confiável — afinal, é por meio dela que damos sentido à nossa identidade e às nossas experiências. No entanto, filósofos e psicólogos ao longo dos séculos têm mostrado que lembrar não é simplesmente recuperar o que foi visto ou vivido, mas sim reconstruir.

Não acessamos o passado como ele realmente foi, mas sim como ele ficou armazenado e, principalmente, como ele é reinterpretado cada vez que o evocamos.

Platão já afirmava que a alma guarda as impressões do mundo como marcas na cera, enquanto Aristóteles, em Da Memória e da Reminiscência, diferenciava a memória passiva da reminiscência ativa, dizendo que lembrar envolve imagens mentais (phantasmata), e não o fato em si. Santo Agostinho, nas Confissões, descreveu a memória como um “palácio interior”, um espaço vasto onde guardamos não apenas o que vemos, mas também o que sentimos e desejamos — reconhecendo, já no século IV, que nem sempre acessamos a verdade pura dos acontecimentos. Com o avanço da psicologia, a ideia da memória como algo falível e moldável se fortaleceu.

Frederic Bartlett, em seus estudos pioneiros, mostrou que ao recontar uma história, tendemos a adaptá-la ao que já conhecemos ou esperamos. Em outras palavras, não lembramos fatos — lembramos versões deles. Essa ideia foi levada adiante por Elizabeth Loftus, que demonstrou como sugestões externas podem não só distorcer memórias reais, mas também criar falsas memórias com grande nível de convicção. Já Daniel Schacter sistematizou esse funcionamento em sua obra "Os Sete Pecados da Memória", mostrando que o esquecimento, os vieses e a sugestibilidade não são falhas da mente, mas mecanismos adaptativos que nos ajudam a navegar no presente.

Henri Bergson, por sua vez, separava a memória mecânica (ligada ao corpo) da memória pura (ligada à consciência), e defendia que lembrar é, acima de tudo, reviver o passado dentro de nós, mesmo que esse reviver nunca seja isento de transformação. A neurociência contemporânea confirma essa perspectiva: ao lembrar de algo, ativamos as mesmas áreas cerebrais usadas para imaginar, e cada reativação da memória a torna suscetível a alterações — um processo conhecido como reconsolidação.

Em suma, lembrar é imaginar com base no que foi vivido. A memória é menos um arquivo e mais um artista: reconstrói, preenche lacunas, adapta e, às vezes, até inventa. Confiamos nela, mas ela não é neutra — ela é profundamente humana.

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